quinta-feira, outubro 13, 2005

O Zé Povinho

Sou capaz de jurar que todos conhecem a figura do Zé Povinho. Quem não deu já de caras com aquela pujante figura que usa o manguito como expressão corporal? Aquele que, de calças remendadas e botas rotas, é a eterna vítima dos partidos, e do poder em geral, dando a vitória a uns e a outros em épocas eleitorais. Como aconteceu, de resto, na última semana.
Mas já não tenho a mesma certeza quanto a saberem quem foi o seu autor.
Pois o criador desta figura-símbolo do povo português foi Rafael Bordalo Pinheiro.
Raphael Augusto Bordallo Prestes Pinheiro, de seu nome, nasceu em Lisboa, em 21 de Março de 1846. Foi uma figura marcante da cultura portuguesa da segunda metade do século dezanove e distinguiu-se – apenas - como desenhador, aguarelista, caricaturista político e social, jornalista, ilustrador, ceramista, actor e professor. A sua genialidade única, atravessou todas estas especialidades e, apesar de ter morrido no início do século vinte, a actualidade da sua obra faz com que seja intemporal.
Começou a fazer caricatura por brincadeira. Ilustrou e compôs desenhos para almanaques, anúncios e revistas estrangeiras e para largas dezenas de livros e publicações. Foi percursor do cartaz artístico em Portugal.
Caricaturista também no barro, deu forma a notáveis figuras como o sacristão, o padre, o polícia, a ama de leite e o genial "Zé Povinho" ao lado de quem colocou a inseparável Maria da Paciência, velha alfacinha alcoviteira.
E, quando lhe perguntavam onde tinha aprendido as artes, respondia:

"Nunca cursei academias. Tenho o curso da Rua do Ouvidor...Cinco anos. Canto de ouvido"

No entanto, Rafael matriculou-se sucessivamente na Academia de Belas-Artes (desenho de arquitectura civil, desenho antigo e modelo vivo), no Curso Superior de Letras e na Escola de Arte Dramática, para logo de seguida, e sempre, desistir.
Por ser avesso a qualquer disciplina, apaixonou-se antes pelo lado boémio da vida lisboeta e estreou-se como actor no Teatro Garrett e no luxuoso Theatro Thalia, na costa do Castelo.
Mas o riso era, de facto, a vocação de Rafael Bordalo Pinheiro. Com o traço irreverente e satírico constrói uma galeria de figurões políticos e financeiros, intervindo decisivamente na demolição das estruturas caducas duma monarquia decadente e na rápida ascensão e propagação dos ideais republicanos.
Mas, muito mais interessante do que esta breve evocação, será admirar a obra deste grande e genial mestre, irmão do pintor Columbano, que pode ser apreciada no Museu Bordalo Pinheiro, onde é possível ter uma visão retrospectiva do seu brilhante trabalho gráfico e cerâmico.
Rafael Bordalo Pinheiro foi um artista empreendedor e multifacetado que reflectiu quase sempre de forma crítica o quotidiano cultural, político e social da época em que viveu.
Mas o que é muito curioso observar é que podemos descobrir nas suas críticas uma tal actualidade que parecem ter sido feitas, à medida, para a sociedade de hoje. Lá estão os temas como o défice, a insegurança e a corrupção. Lá encontramos, por exemplo, figuras e figurões como os políticos desonestos e os troca-tintas.
Pena foi que o boémio incorrigível em que se tornou, sempre de olhos maliciosos a cintilar por entre o monóculo, ter tido uma vida tão curta, porém atribulada.
Uma visita a não perder.
Museu Bordalo Pinheiro
Campo Grande, 382, em Lisboa – 3ªs a Domingo das 10h00 às 18h00
Encerra às 2ªs e feriados

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