quarta-feira, setembro 27, 2006

A reforma

Numa altura em que tanto se discute o modelo da Segurança Social e em que tão poucas respostas nos são dadas às inúmeras questões que se têm colocado nestes últimos anos - em parte por causa das diversas ideologias - parece-me oportuno publicar, na íntegra, um texto do Professor Carlos Pereira da Silva, professor do ISEG e publicado recentemente no Diário Económico.

"Chamo-me Álvaro Campos e Silva, tenho 43 anos, feitos em 13 de Junho de 2006. Ganho 782 euros como adjunto de guarda livros num escritório da Rua dos Douradores. A minha mulher, um ano mais nova, é empregada num comércio de tecidos da Rua dos Fanqueiros. Tenho uma filha de 18 anos, que se candidatou, este, ano à Universidade e um menino de 11 anos, que vai agora para o Secundário. Os meus pais, já velhotes, estão reformados e moram na Madragoa num 3º andar de um prédio antigo. A pensão do meu pai com 65 anos é de 347 euros e a da minha mãe com 63 anos, reformada por invalidez, é de 313 euros.

Li que estão a mudar as regras de cálculo da pensão de velhice e que há estudos que mostram que o Estado não tem capacidade financeira para garantir a promessa que me fez. É verdade que nada ficou escrito, quando em 1984, aos 21 anos, comecei a trabalhar e a descontar para o Regime Geral da Segurança Social. Mas sempre ouvi dizer que o Estado era uma pessoa de bem! Ainda me lembro bem de o Coelho, do Expediente, me ter dito que a minha pensão seria calculada com base na taxa de formação de 2% ao ano, na carreira contributiva até aos 65 anos e na média dos 5 melhores salários dos últimos dez anos. Para mim, a reforma era longe e, por isso, não fiquei impressionado quando o Costa, do Pessoal, me informou que para uma carreira de 40 anos eu iria ter uma pensão equivalente a 79% do meu último salário (com base num ganho salarial real sobre a inflação de 0,5%). Casei-me, em 1987, com 24 anos, e a Madalena, a minha filha, nasceu um ano depois. Foi nessa altura que eu e a Helena, a minha mulher, decidimos comprar um apartamento com 4 assoalhadas em Paço de Arcos. Pedimos um empréstimo ao Banco a pagar durante 25 anos.

A nossa vida, nesse período, não foi fácil. As creches públicas eram raras e as particulares caras. A prestação da casa, a água, a luz, o telefone e os transportes levavam mais de metade do meu vencimento. Com o resto pagávamos a creche da miúda e alguma roupa nova. O ordenado da minha mulher era para comida, alguma extravagância pontual e a prestação do carrito. Ao fim do mês sobrava muito pouco na conta bancária. Em 1992, o Governo alterou as regras de cálculo da pensão. A partir desse ano, em vez dos 5 melhores salários dos últimos 10 anos, passou a usar os melhores 10 salários dos últimos 15 anos. O Costa fez uma simulação da minha pensão que baixava para 78% do último salário. Mesmo assim, não era nada mau. Não fiquei muito preocupado e como tinha outras prioridades não fiz nada.

Em 2001 mudaram outra vez as regras de cálculo da pensão. Em vez de se basearem nos melhores 10 salários dos últimos 15 anos passou a considerar-se os salários de toda a carreira contributiva. Para além disso a taxa de formação da pensão passava de 2% ao ano, para um valor do intervalo entre 2.30% e 2%, consoante os múltiplos do salário mínimo nacional que compunham o salário do trabalhador. Pedi ao Antunes, do Pessoal, para me fazer a simulação da pensão (o Costa já estava reformado) e o valor provável a que chegou foi de 69% do salário final. Perdia cerca de 10 pontos percentuais em relação à previsão de 1984!

Mas aos 37 anos eu era um felizardo. Como já tinha 16 anos de contribuições efectivas, beneficiava de uma tripla opção. Quando me reformasse eu podia escolher a mais elevada das pensões: a calculada com a fórmula antiga, a resultante da fórmula nova, ou a combinação, proporcional ao tempo, da nova e da antiga fórmulas. Ou seja eu ficava com 78% do salário final com que já contava. Não fiz nada porque tinha outras prioridades. E chegamos a 2006 quando de repente o céu cai sobre a minha cabeça.

Aos 43 anos, hoje, decretam que:
1) já não há opção e a minha pensão será uma combinação de fórmula antiga e fórmula nova;
2) para além disso, como me vou reformar em 2028, serme-á aplicado um factor de redução da pensão (factor de sustentabilidade) que depende da futura esperança de vida aos 65 anos. A minha pensão, segundo o Antunes, pode chegar, com sorte e se não houver outras alterações, a 65% do último salário, ou seja menos 14 pontos percentuais em relação à promessa de 1984. Acontece que agora tenho de fazer qualquer coisa. Tenho de poupar! Mas como, se tenho ainda um empréstimo para pagar, com os juros a subirem? Mas como, se tenho .encargos com as propinas da Universidade da minha filha e os estudos do miúdo? Mas como, se tenho os velhotes que precisam de uma pessoa para cuidar deles?

Parece que a pensão dos meus filhos não será superior a 55% do salário final, como na Finlândia, país que, como se sabe, tem outras condições de vida, quer no apoio aos que nascem e aos jovens casais, quer na garantia de uma vida digna aos seus velhotes. Se eu precisar, e Deus queira que não, será que eles me poderão apoiar como eu ajudo hoje os meus pais?

Dizem que as alterações são para corrigir injustiças e para compensar o aumento da minha longevidade. Não contesto. Mas será que viver mais anos, quer dizer viver melhor? Quanto custa uma residência assistida com condições de dignidade e apoio espiritual? Mas porque é que o Estado me prometeu o que não me podia garantir?


Este artigo reflete a situação real de milhares e milhares de trabalhadores portugueses que foram ludibriados por sucessivos governos e que, de forma absolutamente unilateral, alterou por diversas vezes as regras de cálculo das reformas, frustando, deste modo, as mais legítimas expectativas de quem um dia se iria reformar.

E fizeram-no por causa da presumível falência da Segurança Social? Não creio. Acredito antes que tudo tem acontecido pela visível incompetência dos políticos que não souberam ou não quiseram respeitar a dignidade e a esperança de quem contribuiu durante tantos anos para um Estado que, pensavam, poder protegê-los. Enganaram-se completamente, restando-lhes, como ao Álvaro, a pergunta que, pelos vistos, ninguém é capaz de lhes responder: Porque é que o Estado me prometeu o que não podia garantir?"

O artigo do Professor Carlos Pereira da Silva é elucidativo. Desde 1984, quando protagonista da história começou a descontar para o Regime de Segurança Social e até ao momento presente, o Estado alterou 3 vezes as regras do jogo. Isto é, em apenas 22 anos o Estado decidiu alterar as regras anteriormente definidas, aquelas em que os trabalhadores sustentavam as suas expectativas de carreira e de reforma e, tudo isto, sem atender à circunstância do número de anos em que fizeram descontos, ou seja, sem tomar em consideração se os trabalhadores começaram a sua carreira contributiva há 20 anos, há 10 ou na semana anterior.

Podem afirmar que as sucessivas revisões das fórmulas de cálculo foram feitas a pensar na sustentabilidade da Segurança Social, mas eu pergunto se esta mesma Segurança Social terá legitimidade para empurrar trabalhadores que durante anos e anos contribuiram e ajudaram a manter o sistema para uma situação que se adivinha de pobreza extrema?

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