terça-feira, dezembro 05, 2006

A verdade nua e crua

A Rádio Pax, de Beja, desde há muito que nos habituou às excelentes crónicas escritas por Alberto Matos.

O texto que se segue foi transmitido hoje, 05.12-2006. E, porque está muito bem escrito, porque se trata de um assunto extremamente actual e porque a questão é séria e deve merecer a nossa melhor reflexão, achei que devia partilhá-lo convosco. Vale a pena pensar neste momentoso problema.


“O Presidente da República marcou para 11 de Fevereiro o referendo sobre a IVG (interrupção voluntária da gravidez), apelando aos participantes na campanha para que procurem “um debate sério, informativo e esclarecedor para todos aqueles que irão ser chamados a decidir uma matéria tão sensível como esta”.
A primeira condição para um debate sério e esclarecedor é partir da realidade concreta da sociedade portuguesa que, em matéria de aborto clandestino como noutras, nos coloca na cauda da Europa.
Todos podemos invocar os mais variados conceitos filosóficos, éticos e/ou religiosos (ou ainda a ausência deles) para sustentar o SIM ou o NÃO. Mas uma teoria que não se sustenta na experiência prática não passa de especulação, livre mas infecunda. E é sobre a realidade nua e crua da sociedade portuguesa, neste início do século XXI, que faz todo o sentido colocar aos cidadãos a seguinte pergunta: “Concorda com a despenalização da IVG se realizada por opção da mulher, nas primeiras dez semanas de gravidez, em estabelecimento de saúde legalmente autorizado?”.
E qual é a realidade portuguesa em matéria de aborto? Todos os anos vão parar ao hospital mais de mil mulheres devido a complicações resultantes de abortos feitos clandestinamente, por curiosos ou mesmo pelas próprias mulheres, em desespero de causa. Algumas morrem, muitas sofrem lesões irreversíveis que as impedem de ser mães para o resto da vida. Outras ainda são conduzidas à barra dos tribunais, juntando esta humilhação ao sofrimento do corpo e do espírito que as marcará para sempre. Lembram-se que, no referendo de 1998, os partidários do NÃO garantiam que não haveria mais julgamentos de mulheres vítimas de aborto clandestino? É o que se tem visto…
O aborto é, evidentemente, um último recurso numa situação desesperada. Por isso mesmo, a sua prática não deve constituir mais um castigo ou uma vergonha para a mulher. Não é, evidentemente, um método alternativo de planeamento familiar. Mas, apesar de todas as campanhas de prevenção e mesmo com o recurso à pílula do dia seguinte há sempre, estatisticamente, milhares de mulheres obrigadas a recorrer ao aborto, pelas mais variadas razões. Esta é a verdade nua e crua e não vale a pena enterrar a cabeça na areia. Cabe aqui recordar outra promessa de 1998 – um investimento sério no planeamento familiar – furada, por exemplo por Bagão Félix que, uma vez no governo, tudo fez para travar uma educação sexual saudável e descomplexada nas escolas.
Um argumento habitual do NÃO é que uma decisão de tal gravidade não pode depender unicamente da vontade da mulher, devendo envolver o seu marido ou namorado. É desejável que isso aconteça. O problema é que, em muitos casos, já não há parceiro: ou porque este fugiu ás responsabilidades; ou porque a mulher, por razões do seu foro íntimo, entendeu não lhe comunicar que está grávida; ou ainda em situações mais graves, como a violação. Nestes casos (que estão entre as principais causas de aborto), onde está o parceiro? Infelizmente, é em profunda solidão que muitas mulheres são obrigadas a decidir.
E é por isso que elas devem dispor de todo o apoio médico e psicológico, em estabelecimento legal de saúde, onde ninguém chega e faz um aborto sem passar por uma consulta. Neste processo, com a devida informação, é possível até que algumas destas mulheres ou adolescentes mudem de ideias e descortinem alternativas que lhes permitam assumir a maternidade. Pelo contrário, se for à curiosa ou à clínica de luxo, num bairro fino, o aborto é para já! Desde que pague… E até pode lá encontrar um desses hipócritas que se declara objector de consciência à IVG… mas apenas no SNS, tentando sobrepor um qualquer corporativismo aos direitos de cidadania e à saúde das mulheres.
No debate que agora se (re) inicia, iremos assistir à invocação casuística da ciência, numa mistura perversa com a religião. Convirá recordar Galileu – “no entanto, ela move-se”, as rodas dos conventos, a condenação do preservativo e da pílula do dia seguinte. Os diversos “ayatollahs” são livres de pregar aos fiéis mas, por favor, não nos obriguem a viver numa sociedade confessional. Parece que o fundamentalismo não está só na Turquia nem do outro lado do Mediterrâneo. É que se o SIM vencer no referendo de 11 de Fevereiro, como estou convicto, ninguém fica obrigado a violar os seus conceitos éticos ou religiosos. Será apenas o triunfo do direito à livre escolha.
O debate ainda está no princípio, mas é importante colocar em cima da mesa a verdade nua e crua, pondo de lado toda a hipocrisia”.

3 comentários:

Anónimo disse...

O autor desta crónica agradece a divulgação, até porque só da discussão pode nascer alguma luz...

Um abraço

Alberto Matos

Anónimo disse...

Deve caber à mulher "a sua decisão"!

Com que direito queremos decidir sobre a vida de terceiros?

Com que direito obrigamos indivíduos mal amados a nascer, (parece que estudos feitos nos Estados unidos mostram que esses indesejados contribuíram para aumentar a insegurança e nem mesmos aquela sociedade securitária deu conta do problema, até que, passados 25 anos sobre a despenalização do aborto, a criminalidade começou a baixar como que por magia!) ?

Com que direito queremos enxovalhar e prender essas mulheres?

Que direito tem essa promíscua ordem dos médicos, para tomar posição activa - NÃO à despenalização, (se mais não tem feito que defender os interesses económicos da corporação, quantas vezes escondendo mesmo a verdade nos processos disciplinares a médicos incompetentes!) ?

Com que direito os padres vão fazendo a cabeça dos ignorantes, dos incultos, dos iletrados ou dos analfabetos? Parece que a inquisição ainda anda por ai. Será que pagando a bula ainda podem ser expiados os pecados dos beatos, por maiores que sejam, incluindo crimes de sangue, ou o aborto, até há bem pouco tudo valia !
Nesta matéria como noutras os caciques da igreja, como o Guterres-PS entre outros e a maioria do PSD, quiseram e querem decidir pela PENALIZAÇÂO do ABORTO, porque é chique estar de bem com a igreja, beijar as mãos dos papas e outros bispos!

Com que direito vamos fazer a pergunta, que pode na resposta condicionar as mulheres livres? Ou será que as mulheres não devem ser livres?

Há um velho ditado que diz, - “Perguntas parvas tem necessariamente resposta parvas!”
Querem apostar como um referendo à Pena de Morte, perguntando: “Concorda com a introdução da pena capital nos casos que comprovadamente foi cometido assassínio ? , daria com larga maioria um SIM.
Não seria democrático fazer esta pergunta? Então porque o não fazemos? Será que a abolição da pena de morte não é uma decisão civilizacional e democrática?

Não, há coisas que não podem ser decididas em democracia! Na minha casa não vou consultar o meu filho (maior de idade) para decidir como se gere o orçamento!
Há portanto locais e atitudes adequadas para todas as circunstâncias.
- Já perdemos demasiado tempo a penalizar quem não merece.

Saúdo todas as mulheres que com coragem decidem (qualquer que seja a decisão) da sua vida e da vida no seu ventre!

demascarenhas disse...

Em primeiro lugar quero dizer ao Alberto Matos, que não tenho prazer de conhecer, que não tem nada que agradecer o facto de ter divulgado uma sua crónica. Este é um espaço aberto a todos e ele será tanto melhor, quanto mais e melhores forem as participações.

Em segundo lugar, saudar o regresso do/a Vexata que não tínhamos o prazer de ler há já algum tempo. Mas queria fazer-lhe um reparo, se mo permite. Então por onde ficou a expressão latina com que sempre tem terminado os seus comentários e de que nós tanto gostamos?

Saudações para os dois!