sexta-feira, maio 21, 2010

Desespero



José Carlos Ary dos Santos (Lisboa, 19371984) foi um poeta e declamador de poesia. Poeta de personalidade entusiasta e irreverente, muitos dos seus textos têm um forte tom satírico e até panfletário. Um homem e artista fascinante.





Desespero



Não eram meus os olhos que te olharam
Nem este corpo exausto que despi
Nem os lábios sedentos que poisaram
No mais secreto do que existe em ti

Não eram meus os dedos que tocaram
Tua falsa beleza, em que não vi
Mais que os vícios que um dia me geraram
E me perseguem desde que nasci

Não fui eu que te quis. E não sou eu
Que hoje te aspiro e embalo e gemo e canto,
Possesso desta raiva que me deu

A grande solidão que de ti espero
A voz com que te chamo é o desencanto
E o espermen que te dou, o desespero





quinta-feira, maio 20, 2010

O Pechiché


“Vai lá dentro ao meu quarto buscar uma tesoura que deixei em cima do pechiché”.


Foram tantos os anos que ouvi falar no pechiché e tantas as gerações que escutaram o termo. Era, então, muito usual. Mas o que era de facto o pechiché? Aposto que muita gente, sobretudo a mais jovem, não faz a mínima ideia.


Pois o pechiché é um móvel bem ao estilo “art déco”, muito em moda nos anos 20 e 30 do século passado, com um espelho a meio, que fazia parte das mobílias de quarto. O da casa dos meus pais era um móvel simpático, largo e sobre o baixo, com três blocos que se ligavam entre si e todos eles com espelhos, sendo que o espelho maior era a do corpo central.


Há quem diga que aquilo que nós conhecíamos como pechiché era, afinal, uma “coiffeuse ou, em português, um toucador, porque, esse sim, tinha três espelhos.


A maior parte das mobílias era simples e, muitas delas, eram feitas de uma madeira que até nem era de grande qualidade. De qualquer modo, na época, qualquer quarto que se prezasse não prescindia de uma cama, duas mesas-de-cabeceira, um guarda-vestidos, às vezes uma cómoda e, claro, um pechiché.


Que saudades! Guardo na memória de tantos anos, viva como se fosse hoje, a lembrança do pechiché (que se calhar até era um toucador) do quarto dos meus pais.


quarta-feira, maio 19, 2010

E porque não?


Todos sabemos que o monopólio norte-americano das agências de rating está engajado a inconfessáveis interesses, designadamente os especulativos. A Moody’s, a Fitch e a S&P opinam - mal como temos visto tantas vezes - e, conforme têm salientado alguns analistas, a sua acção “não é saudável para o mundo e muito menos para a economia europeia”. Por isso, é com grande preocupação que se assiste à vertigem especulativa que tem vindo a penalizar as economias dos países do sul da Europa, nomeadamente a Grécia, Portugal e Espanha.


No caso do nosso país, sabemos que existem enormíssimos problemas estruturais que já deveriam ter sido resolvidos há décadas (e não foram), que a recuperação da economia não se verifica, que o desemprego não pára de subir e que pesa sobre nós a ameaça (de que não podemos prever as consequências) provocada pelo endividamento que se tornou imparável nos últimos anos.


Mas as notações das agências não têm ajudado. O ataque que tem sido feito à Grécia, a Portugal e à Espanha tem sido forte, comparando números que não são comparáveis e emitindo pareceres que devendo fazer parte da solução, são, também eles, uma parte importante do problema. É um ataque duro aos países mas é também um ataque – penso que já ninguém terá dúvidas sobre isso – ao euro que tem vindo a depreciar-se em relação ao dólar. E, acreditem, nada acontece por acaso.


Daí que a iniciativa da União Europeia em criar uma agência de notação europeia tenha sido muito bem acolhida. É urgente dar uma resposta ao ataque violento da especulação. Contudo, seria bem-vindo um organismo que fosse sólido, credível e transparente e não, como referia há dias o Ministro Teixeira dos Santos, “um boneco que esteja nas mãos dos poderes públicos para ser simpático aos governos”.


Uma agência de rating europeia. Porque não?

terça-feira, maio 18, 2010

Afinal em que ficamos?


Ainda na última quarta-feira ouvimos, no Parlamento, o Vice-Presidente da bancada parlamentar do PSD, Miguel Frasquilho, afirmar que “a situação a que chegamos é a consequência dos caminhos seguidos pelo Governo e que contribuiu para que o país e a administração pública continuassem a gastar acima das suas possibilidades. Foi assim no Orçamento para 2010 e no PEC até ir a Bruxelas porque lá ouviu das boas”. Portanto, Frasquilho, cascou forte e feio no Governo.

Pois o mesmo Miguel Frasquilho elaborou um documento para o Banco Espírito Santo onde defende o Governo socialista e afasta um cenário de crise política.

O documento, intitulado “A Economia Portuguesa – Maio de 2010”, e citado pelo Diário de Notícias, tinha como destino potenciais investidores estrangeiros. Nele, Frasquilho sublinha os esforços do Executivo para reduzir o défice e assegura que o país não corre riscos de liquidez.


Afinal em que ficamos? Será que não conseguimos sair da costumada dissonância entre o que se diz hoje e o que se dirá ou disse noutro qualquer dia? Será que é falta de coerência ou simplesmente cegueira política? É por estas e por outras que o povo costuma dizer que eles (os políticos) são todos farinha do mesmo saco.

segunda-feira, maio 17, 2010

Homenagem a Saldanha Sanches


José Luís Saldanha Sanches, Doutor em Direito pela Faculdade de Direito de Lisboa, professor universitário e jurisconsulto, notável fiscalista, autor de livros e artigos e comentador da actualidade política e económica morreu há dias aos 66 anos.


Não estranhem por isso que a primeira crónica desta semana seja dedicada à figura e à memória de Saldanha Sanches. E faço-o, sobretudo, pelo grande respeito que a sua grandeza moral, a frontalidade e a coerência que sempre norteou a sua vida me merecem. É que partilhássemos, ou não, da sua ideologia, nunca conseguíamos ficar indiferentes à coragem e à irreverência como defendia as suas ideias. Por certo, ninguém irá esquecer os seus comentários directos e dirigidos a políticos quando estava em causa a corrupção e a defesa do interesse público.


Fernando Rosas recordou-o como “um homem de uma geração de luta e de combate”.


O presidente da Câmara Municipal de Lisboa, António Costa, relembrou Saldanha Sanches como "uma das vozes mais livres e exigentes que sempre se bateu com coragem pela liberdade antes e depois do 25 de Abril. Aliás, Saldanha Sanches esteve preso antes do 25 de Abril e já depois de restaurada a democracia e, de ambas as vezes, por defender as suas convicções.


A esposa, a Procuradora-Geral Adjunta Maria José Morgado, disse sobre o marido “ser intolerável com a corrupção, os cobardes e os oportunistas, além de que morreu como sempre viveu – um homem livre”.


Ao lembrar o homem que agora desaparece, não posso deixar de sublinhar – em jeito de homenagem - a sua última crónica (excelente como sempre), a que chamou “Os Papa-Reformas” já ditada do leito do hospital, em que criticava a acumulação de reformas e complementos em algumas empresas públicas, muitas vezes com promoções sem trabalho. Dizia também que o aumento do IVA e a tributação das mais-valias de nada servem se o Estado continuar a esbanjar dinheiro como o tem feito até aqui. Atacou as obras públicas e disse que por estas razões o Estado vive agrilhoado a compromissos políticos, arranjinhos, promessas e vassalagens, sendo uma verdadeira esquizofrenia que nada se faça contra esta situação num momento economicamente difícil para o país.


Mesmo nos derradeiros momentos, José Luís Saldanha Sanches fez jus ao respeito que lhe tínhamos há muito: por ser um homem livre, honesto, coerente e desassombrado.


quinta-feira, maio 13, 2010

Nunca digas desta água não beberei


E já que nestes últimos dias tenho falado em champanhes, e para que não me acusem, como o fizeram, que ainda estou “ébrio” de alegria com a vitória do Benfica, escolhi para fazer parte do título da crónica de hoje uma palavra sem álcool - água. Apenas por uma questão de temperança.

Na semana passada José Sócrates afirmou num liceu de Paris que "nunca quis ser primeiro-ministro" e que “recorda a vontade de ser deputado e, depois de estar no Governo, a apetência para executar políticas sobretudo na área ambiental".

Coerente, já em Março de 1998, o então ministro-adjunto, em entrevista à revista “Política Mesmo”, garantia que ser primeiro-ministro não estava no seu horizonte e era até pretensão de mais”. E secretário-geral do PS? “Nunca, nem nunca pensarei nisso” … “acho até que não tenho o talento, as qualidades, nem os méritos que um líder do PS deve ter”.

Como se sabe, Sócrates foi eleito secretário-geral do PS em Setembro de 2004 e eleito primeiro-ministro em 2005 e 2009.

É que esta história de intenções, promessas e juramentos políticos tem destas coisas. Já em 1996 Marcelo Rebelo de Sousa perante a possibilidade de vir a ser escolhido para dirigir o PSD tinha jurado a pés juntos “Não! Não e Não! Nem que Cristo desça à terra!”. Pois Cristo não desceu à terra e o Professor Marcelo foi mesmo eleito líder social-democrata.

Por estas e por outras é que o melhor é mesmo seguir o ditado antigo “Nunca digas desta água não beberei”.


quarta-feira, maio 12, 2010

Mais Champanhe


Então, só para terminar este tema, é bom que se diga que quando me refiro ao champanhe não estou a pensar apenas nos excelentes vinhos que são produzidos na região de Champagne, em França, estou também a contemplar os vinhos espumantes, nomeadamente os portugueses, que os temos e bons.


Quando ontem escrevi que o champanhe é uma fonte de saúde, aludia ao facto de já há muitos anos os médicos pensarem que o vinho tinha poderes curativos. A prova disso é que o Larousse-médico, de 1920, afirmava que “este poderoso anti-infeccioso” destrói o bacilo da febre tifóide em dez minutos. Com este aval, o “poderoso medicamento” começou a ser rotulado de “Fonte da Juventude” ou de “Tisana dos Convalescentes” e a ser mais facilmente encontrado nas farmácias do que em caves.


Um último apontamento sobre esta magnífica bebida. Até agora, ainda não consegui encontrar uma explicação aceitável para, uma vez aberta a garrafa, um simples talher (um garfo ou uma colher de sobremesa) enfiado no respectivo gargalo impedir que o gasoso se perca. E garanto-vos que isto funciona mesmo, ainda que se leve dois ou três dias a esvaziar a garrafa do precioso néctar, o que eu acho um pecado.


E, já agora, expliquem-me porque é que nas comemorações de qualquer coisa, a rapaziada se lembra de agitar furiosamente a garrafa do champanhe para fazer saltar a tampa (e o líquido), perdendo-se, assim, uma grande parte do vinho? PORQUÊ? Para além do mais há que ter em conta a “guerra contra o desperdício”


Resumindo para concluir. Mais do que uma boa taça (uma flute, vá lá) de bom champanhe ou espumante, o que vale mesmo a pena é beber mais uma. Ainda que com a moderação necessária. Uma SAÚDE para todos.



terça-feira, maio 11, 2010

Hip, Hip, Hurraaaaah!


Pelo título devem julgar que tanta alegria provém do facto do meu Benfica se ter consagrado campeão da forma brilhante como o conseguiu – a jogar bem . Mas não é o caso. Estou satisfeito, sim (e vivó Benfica), mas a crónica de hoje nada tem a ver com isso.


Quem me conhece sabe que me pélo por um bom champanhe. E não só para comemorar o que quer que seja, gosto mesmo de bebê-lo a acompanhar uma refeição, uma boa conversa ou a propósito de nada.


Mas o gosto ficou ainda mais reforçado (como se isso fosse necessário …) quando li algures que o champanhe contém seiscentas variedades de moléculas. Por exemplo, magnésio e sais de carbonato que previnem a indigestão, lítio que combate a depressão e enxofre – depurativo e desintoxicante – que combate a fixação do colesterol nas paredes vasculares. O selénio (já de si um verdadeiro banho de juventude) e o fósforo transmitem a alegria que umas taças de champanhe sempre nos proporcionam.


Um bouquet óptimo, de alegria e saúde. Que mais podemos pedir?


Mas o champanhe tem ainda que se lhe diga. Amanhã voltaremos ao tema.

segunda-feira, maio 10, 2010

E o país parou


Agora é que é, a crise acabou. Pelo menos tudo indica que deve ter acabado e, com ela, foram-se os problemas que estavam a desabar sobre nós e que ameaçavam levar o país e os cidadãos à indigência.

Não, desta vez não foram José Sócrates nem Teixeira dos Santos que anunciaram que melhores ventos (não são os tais que arrastam as nuvens de cinza do vulcão da Islândia) tinham afastado a crise para longe.

Cheguei a essa conclusão ao ver o espectáculo de milhares de pessoas em todo o país a saltarem de contentes, a soprarem apitos e a agitar bandeiras e cachecóis vermelhos só por que o Glorioso, o seu Benfica, venceu o campeonato nacional de futebol. Vi as lágrimas que se soltavam (agora já não de tristeza mas de uma profunda alegria), os abraços que surgiam espontâneos e sentidos perante a concretização de um feito que todos (quase todos, vá) achavam merecido.

Esqueceram-se as angústias provocadas pela incerteza do nosso futuro e pelos sacrifícios (ainda maiores) que nos vão ser exigidos em breve. O país parou. Os canais televisivos levaram horas e horas a transmitir reportagens de ruas apinhadas de gente feliz e de engarrafamentos colossais. Entrevistas que se repetiam à exaustão a quererem saber qual era o estado de alma que aquelas almas sentiam naquele momento. E tanta era a felicidade que eu suspeito que se pedissem a muita daquela gente se estava na disposição de doar metade do ordenado ao seu clube ou … ao país, eles não hesitariam em dar. O Benfica é campeão, o resto … bem, o resto logo se vê depois da festa.

SLB! SLB! SLB!

sexta-feira, maio 07, 2010

"Porque ..."

Um soneto de Sophia de Mello Breyner Andresen

"Porque ..."

Porque os outros se mascaram mas tu não
Porque os outros usam a virtude
Para comprar o que não tem perdão.
Porque os outros têm medo mas tu não.

Porque os outros são os túmulos caiados
Onde germina calada a podridão.
Porque os outros se calam mas tu não.

Porque os outros se compram e se vendem
E os seus gestos dão sempre dividendo.
Porque os outros são hábeis mas tu não.

Porque os outros vão à sombra dos abrigos
E tu vais de mãos dadas com os perigos.
Porque os outros calculam mas tu não.




quinta-feira, maio 06, 2010

Um dia vou ajudar quem mais precisa …



Embora não utilize o açúcar no café, tenho sempre curiosidade em ler o que vem escrito nos pacotinhos que acompanham a “bica”. E, por vezes, vêem-se campanhas muito giras que vale a pena acompanhar. Este é um meio magnífico para, por exemplo, se transmitirem mensagens sobre saúde, informações de carácter cultural ou cívica, iniciativas em volta e por causa de uma causa ou, simplesmente, onde se faz publicidade a uma qualquer marca ou produto. Muitas vezes em tom sério, outras com o humor que ajuda a passar o que se pretende de uma forma mais eficaz.

Ontem, ao pedir a habitual bica (em chávena escaldada), o pacotinho de açúcar trazia a frase:

“Um dia vou ajudar quem mais precisa …”

Era uma intenção, uma lembrança, um recadinho. Mas vale a pena tê-la em conta. É que há tanta gente - por vezes bem perto de nós - a necessitar dessa ajuda. E esse apoio, pode ser tão simples de dar e ter um significado enorme para quem o recebe.

“Um dia vou ajudar quem mais precisa …”. Que esse dia venha em breve.

quarta-feira, maio 05, 2010

A Nova Pobreza


Manuel António Pina é jornalista e autor do texto que se segue, que publicou no Jornal de Notícias há umas duas semanas. É visível o sarcasmo que pôs na sua crónica, a que chamou “A Nova Pobreza”. Porém, para os cidadãos, que lidam diariamente com a precariedade de emprego ou mesmo com o desemprego, com os salários demasiado baixos e com as assimetrias tão chocantemente injustas, o texto poderá, evidentemente, provocar-lhes um sorriso mas dificilmente os fará esquecer o desânimo e a depressão em que se encontram.


Ora vejam,


“A crise quando chega toca a todos, e eu já não sei se hei-de ter pena dos milhares de homens e mulheres que, por esse país, fora, todos os dias ficam sem emprego se dos infelizes gestores do BCP que, por iniciativa de alguns accionistas, poderão vir a ter o seu ganha-pão drasticamente reduzido em 50%, ou mesmo a ver extintos os por assim dizer postos de trabalho.

A triste notícia vem no DN: o presidente do Conselho Geral e de Supervisão daquele banco arrisca-se a deixar de cobrar 90 000 euros por cada reunião a que se digna estar presente e passar a receber só 45 000; por sua vez, o vice-presidente, que ganha 290 000 anuais, poderá ter que contentar-se com 145 000; e os nove vogais verão o seu salário de miséria (150 000 euros, fora as alcavalas) reduzido a 25% do do presidente.

Ou seja, o BCP prepara-se para gerar 11 novos pobres, atirando ainda para o desemprego com um número indeterminado de membros do seu distinto Conselho Superior.

Aconselha a prudência que o Banco Alimentar contra a Fome comece a reforçar os "stocks" de caviar e Veuve Clicquot, pois esta gente está habituada a comer bem”.


A coisa está a ficar difícil para estes gestores. Tanto mais que para estes 11 “novos pobres” não há sindicatos que os protejam nem manifestações do 1º. de Maio que defendam os seus direitos como trabalhadores. E com as reduções de salário previstas é bem provável que, pelo menos alguns deles, venham a passar dificuldades.

Quanto à sugestão de Manuel António Pina para que o Banco Alimentar Contra a Fome possa vir a apoiar mais estes “carenciados”, vou tentar mexer as minhas influências para que, pelo menos, não lhes falte um bom espumante português e um queijo da serra genuíno. Vamos a ver, não prometo.


terça-feira, maio 04, 2010

A Dúvida

Esta é uma história verdadeira, passou-se comigo. E vou contá-la porque pode servir de aviso às pessoas de boa-fé, que eu sei que ainda há algumas por aí ...


Almoçávamos num simpático restaurante de uma das nossas mais bonitas cidades e eu estava sentado à ponta de uma das mesas. Perto, numa outra mesa, de costas voltadas para mim, estava sentado um senhor que tinha o casaco encavalitado no espaldar de uma cadeira mesmo ao seu lado.


Apreciávamos o petisco quando o senhor jogou a mão ao casaco para tirar a carteira a fim de pagar a conta. Qual quê? Nada de carteira, desaparecera, evaporara-se. Levantou-se num impulso, e com ar de poucos amigos, dirigiu-me um olhar desconfiado. Aliás, ele já nem estava desconfiado, percebia-se claramente que tinha a certeza de que se a carteira tinha sumido o carteirista só podia ser eu. Afinal, era eu que estava mais perto do casaco.


Era um olhar intencional, sem direito a contraditórios, definitivamente fulminante. E senti-o eu e sentiu-o quem estava a meu lado. Sem dúvidas, mas também sem provas, eu era o culpado. Felizmente que o homem não teve a ousadia de me acusar mas eu sabia que ele não pensava outra coisa.


O clima ficou pesado. Perante aquele olhar sem palavras, senti necessidade de dizer alguma coisa. Perguntei-lhe se teria usado a carteira em algum lugar antes de ir ao restaurante. Avancei com a hipótese da carteira ter ficado no emprego ou em casa. Respondeu-me que ainda não a usara naquele dia e lançou-me um último (e desconfiado) olhar antes de sair.


A situação era embaraçosa. O homem estava sentado ao meu lado e o casaco perto de mim. Afinal, se a carteira desaparecera, não faria sentido que ele desconfiasse exactamente de mim? Admiti que sim, mais, até eu já começava a desconfiar de mim. Afinal, uma carteira não se evapora num repente.


Meia hora depois o homem voltou ao restaurante. Vinha com outra cara, sorria e percebia-se claramente que tinha encontrado a carteira. Achara-a no banco de trás do seu carro. Falou em voz alta para o dono do restaurante de modo a que nós também ouvíssemos, chegou mesmo a olhar na nossa direcção. Com outra expressão, claro. Não me pediu desculpas mas a verdade é que também não me tinha culpado (oficialmente) do que quer que fosse.


A história – verdadeira, repito – serviu-me de lição, pelo menos para me precaver em relação a situações futuras. Sentar-me perto de casacos arrumados em costas de cadeiras, nunca mais. Como disse, tudo aquilo foi embaraçoso e ainda hoje tenho bem presente aquele olhar profundo e acusador.


Fica o alerta.


segunda-feira, maio 03, 2010

A verdade desanimadora


Já aqui escrevemos, por diversas vezes, sobre as baixas qualificações dos nossos trabalhadores e empresários. Escritos que nem sempre foram muito bem acolhidos pelos Amigos que nos lêem.


A verdade, porém, goste-se ou não, é que os trabalhadores portugueses são pouco qualificados, e segundo veio agora a público, têm ainda menos competências de que os brasileiros, os turcos ou mesmo os mexicanos Cerca de 60 % da mão-de-obra em Portugal não tem qualquer formação específica. Quanto aos patrões, oito em cada dez não passaram do ensino básico. Tal como o algodão, os números não enganam.


E isto não aconteceu por acaso nem foi de repente. Para este estado de coisas muito contribui um nível de ensino que é nitidamente insatisfatório, que não prepara de forma capaz quem é lançado para o mercado de trabalho e que não motiva os alunos a aprenderem (31 % dos jovens deixam de estudar antes de terminarem o secundário e 3/5 dos nossos alunos sofrem de iliteracia ou, por outras palavras, são analfabetos funcionais). De facto, o futuro não se apresenta muito risonho.


E a nossa tristeza aumenta ainda mais quando somos confrontados com um dado verdadeiramente espantoso: no início deste século XXI, Portugal tem cerca de 10% de analfabetos, a mesma percentagem existente nos países nórdicos … no final do século XIX.


Como enfrentar, assim, a concorrência de países que julgávamos até agora serem mais atrasados do que o nosso, quando, pelo que parece, somos considerados os menos qualificados de toda a Europa?


Apesar de tudo as coisas têm vindo a melhorar mas o panorama continua triste e desanimador. Goste-se ou não, a realidade é esta e, tenho a certeza, ninguém feliz com ela. Há muito para fazer. E depressa.