segunda-feira, março 30, 2015

"A última bilha de gás durou dois meses e três dias"


Herberto Hélder de Oliveira (1930 - 2015) foi um poeta português, considerado o maior da segunda metade do século XX.

De Herberto Helder, "a última bilha de gás durou dois meses e três dias"


a última bilha de gás durou dois meses e três dias,
com o gás dos últimos dias podia ter-me suicidado,
mas eis que se foram os três dias e estou aqui
e só tenho a dizer que não sei como arranjar dinheiro para outra bilha,
se vendessem o gás a retalho comprava apenas o gás da morte,
e mesmo assim tinha de comprá-lo fiado,
não sei o que vai ser da minha vida,
tão cara, Deus meu, que está a morte,
porque já me não fiam nada onde comprava tudo,
mesmo coisas rápidas,
se eu fosse judeu e se com um pouco de jeito isto por aqui acabasse nazi,
já seria mais fácil,
como diria o outro: a minha vida longa por muito pouco,
uma bilha de gás,
a minha vida quotidiana e a eternidade que já ouvi dizer que a habita e move,
não me queixo de nada no mundo senão do preço das bilhas de gás,
ou então de já mas não venderem fiado
e a pagar um dia a conta toda por junto:
corpo e alma e bilhas de gás na eternidade
- e dizem-me que há tanto gás por esse mundo fora,
países inteiros cheios de gás por baixo!

sexta-feira, março 20, 2015

O meu "Dia do Pai"



Aproveitando a efeméride do "Dia Internacional da Felicidade", que se comemora hoje, quero dizer-vos como fiquei feliz ontem, "Dia do Pai". Para além do presente que os meus dois filhos me deram, eles também ofereceram um cartãozinho encantador que dizia a começar:


O meu pai é o melhor do mundo,
é muito educado e inteligente,
sabe de tudo um pouco
e também é o mais valente.


e por aí fora, e por aí fora ...

tudo feito - letra e traço - com a candura de duas crianças de pouca idade. Adorei o conjunto mas o desenho do "pai gigante", maior que a casa e que a árvore e o pormenor do "pai tem um carro" (na gravura acima) são maravilhosos. Ah, e falta referir, porque é importante, a filha tem 43 anos e o filho 36.

Tenho razões para ser um Pai baboso. Muito Obrigado, meus filhos. Pelo presente, pela imaginação e pelo Amor que sempre me dedicam.

quinta-feira, março 19, 2015

As listas VIP ...



Na minha crónica de ontem escrevi sobre a confiança (ou da falta dela) dos cidadãos nas Instituições, nos Governos e nos órgãos de decisão. Pois bem, tenho que voltar ao assunto a propósito da tão badalada "Lista VIP de contribuintes".

Depois de semanas de notícias que ora confirmavam ora desmentiam a existência da tal lista (ou de um projecto de lista) e, mais recentemente, de que ela de facto existia mas que o Governo e a Autoridade Tributária não tinham qualquer responsabilidade na sua elaboração, caiu que nem uma bomba as demissões do Director-Geral da Autoridade Tributária e Aduaneira e do Subdiretor-Geral da Justiça Tributária e Aduaneira. Não se sabem as razões que os levaram a tomar essa atitude mas ninguém acredita que se trate de uma precipitação. "Houve procedimentos internos e propostas no âmbito da Autoridade Tributária nesta matéria" ouve-se em surdina nos corredores, mas todos enjeitam que tivessem alguma coisa a ver com o facto.


Chega. Estamos fartos de tantas confusões. Ninguém aprovou e nem ninguém decidiu mas a verdade é que a lista parece existir. Mas, ainda que tivesse vindo do além, o que nos deve preocupar é para que efeito a lista foi pensada. E também queremos saber quem é que tem acesso aos registos dos contribuintes e se o acesso desses funcionários está devidamente autorizado e fica registado.

O que está em causa é a confiança no sistema fiscal português. Não pode haver contribuintes VIP ou contribuintes de segunda, com procedimentos distintos para cada um. As fragilidades (que se comprova existirem) do nosso sistema fiscal têm que ser corrigidas. Vamos esperar por novos desenvolvimentos e, eventualmente, por novas demissões. A "teia" parece estar ainda muito emaranhada.

quarta-feira, março 18, 2015

Coincidências?



Sabe-se que a confiança dos cidadãos nas Instituições, nos Governos e nos órgãos de decisão traduz-se em democracias mais fortes e saudáveis. Como acontece, reconhecidamente, nos países do norte da Europa. Cá no nosso cantinho, pelo contrário, a crescente abstenção às eleições (sejam elas para o que forem) e a crença generalizada que os políticos e os partidos são todos iguais, demonstram a fragilidade da nossa democracia.

Porém, às vezes, vê-se brilhar uma luzinha de esperança e ficamos com a sensação de que, afinal, nem tudo está perdido. Foi essa a convicção com que eu (e muitos mais, certamente) ficámos quando foi criada a "Comissão de Recrutamento e Selecção para a Administração Pública (CReSAP)" destinada a escolher os melhores dirigentes para o Estado. Pensámos, então, que os "boys" e os amigalhaços do costume jamais ascenderiam a lugares de topo porque, "a partir de agora, doravante e p'ro futuro", a selecção de candidatos seria pautada pelo rigor, isenção e competência para os cargos. Enganei-me, quero dizer, enganámo-nos.

Segundo o jornal "Público", desde que a Comissão foi criada foram apresentadas às diferentes tutelas 339 propostas. Coincidência, ou não, das que foram rejeitadas registou-se um ponto comum: quase todos os candidatos têm uma ligação ao Partido Socialista. Curiosamente, de todos os três melhores classificados em cada concurso, o Governo escolheu maioritariamente o candidato que está próximo ou filiado no PSD e no CDS. Como é bem patente nas últimas 14 nomeações para as direcções dos centros distritais da Segurança Social em que todos os escolhidos tinham (por mero acaso) um cartão de militante dos partidos que estão actualmente no poder.

"Yo no creo en brujas, pero que las hay, las hay". E o que parecia ser um bom princípio para a administração, nomeadamente no que à transparência e competência dizem respeito, manifestou-se uma completa intrujice. Depois queixem-se que os portugueses estão completamente alheados da política. Pudera ...


segunda-feira, março 16, 2015

Os troca-tintas



Ainda não há muito o Governo incitava aqueles que não conseguiam encontrar emprego em Portugal a sair da sua zona de conforto e a emigrar. Ideia, aliás, que foi reforçada várias vezes, chegando até a relativizar-se os efeitos negativos da ida de portugueses para o estrangeiro.

Contudo, na semana passada, ouvimos outro discurso bem diferente. Na quinta-feira, foi aprovado em Conselho de Ministros o Plano Estratégico para as Migrações 2020, com o intuito de estimular o regresso de emigrantes a Portugal. Uma contradição ou uma mudança de estratégia? Nada disso, segundo a explicação esfarrapada de um elemento do actual executivo "quando as pessoas saem do país - seja em mobilidade estudantil ou profissional, de forma livre ou forçada -, o que precisam é de condições para poder voltar. A mobilidade é positiva, mas não é apenas sair. Também é poder regressar". Tretas!

E qual é (qual vai ser) o fabuloso plano que irá ser posto em prática para fazer regressar os portugueses? De entre as medidas que estão previstas no tal Plano Estratégico, destaca-se o programa VEM - Valorização do Empreendedorismo Emigrante (bolas, que já não posso com a palavra empreendedorismo ...), que procura apoiar o regresso dos emigrantes através da possibilidade de estes concorrerem a projectos de criação do próprio emprego ou empresa. E será que vai ser acessível a todos os que queiram voltar à Pátria? Não, numa primeira fase, serão apoiados 40 ou 50 projectos que serão apreciados (com que critérios, ninguém sabe ainda) e consta que a cada um dos seleccionados será atribuída a fantástica verba de dez mil euros que - seguramente - será mais do que suficiente para se montar qualquer negócio. É só uma questão dos tais "empreendedores" serem criativos.

Resumindo, no início o Governo disse vai, agora diz vem. Ou seja, um vaivém de políticas contraditórias "pensadas" por governantes inconsequentes. No fundo, uns troca-tintas em que já poucos confiam.


sexta-feira, março 13, 2015

"Canção", de António Botto


De António Botto (1897 - 1959), grande poeta e dramaturgo português, um dos mais originais e polémicos do seu tempo, "Canção".


"Canção"

Venham ver a maravilha
Do seu corpo juvenil!

O sol encharca-o de luz,
E o mar, de rojo, tem rasgos
De luxúria provocante.

Avanço. Procuro olhá-lo
Mais de perto... A luz é tanta
Que tudo em volta cintila
Num clarão largo e difuso...


Anda nu - saltando e indo,
E sobre a areia da praia
Parece um astro fulgindo.

Procuro olhá-lo; - e os seus olhos
Amedrontados, recusam
Fixar os meus... - Entristeço...

Mas nesse olhar fugidio -
Pude ver a eternidade
Do beijo que eu não mereço...

quarta-feira, março 11, 2015

Uma penhora (muito) ridícula ...



Há muito que se sabe que certas situações só se resolvem quando são divulgadas pela comunicação social. Basta serem escarrapachadas nas páginas dos jornais ou nas televisões e, como num passe de mágica, logo se arranja uma solução. Exactamente o que aconteceu há dias com a penhora feita pelas Finanças a uma Instituição de Solidariedade Social do Porto, a qual só foi levantada quando o caso veio a público.

E não era para menos, convenhamos. O "Coração da Cidade" é uma IPSS do Porto que ajuda diariamente 600 famílias (cerca de 2300 pessoas) carenciadas, distribuindo 2500 quilos de alimentos, alimentos esses que lhes são doados por hipermercados. Pois bem, a Instituição "teve o descaramento" de passar por umas quantas portagens de umas ex-Scuts sem pagar e isso foi o suficiente para a autoridade tributária decidir penhorar alimentos que tinham sido doados. De repente, ficaram sem pão, fruta, hortaliças, massas, arroz e leite que, por acaso ou por ironia do destino, até já tinham sido distribuídos. Nem mais, quem não paga (as ex-Scuts) arrisca-se a ficar sem os bens, ainda que os mesmos sejam alimentares e não sejam propriedade do "prevaricador".

E aqui, para além do caricato da situação e do facto de - ao que dizem - as coimas em questão já terem sido regularizadas, não posso deixar de colocar duas questões: 1 - Que coisa é esta de penhorar bens alimentares, o que, em princípio, são bens impenhoráveis e, ainda por cima, que tinham sido doados? 2 - E porque carga de água as IPSS - muitas delas (como esta) funcionam apenas com trabalho voluntário, com escassos recursos e sem apoio do Estado - estão sujeitas ao pagamento deste tipo de despesas? E, já agora, nestes casos, não seria possível arranjar uns descontos no preço dos combustíveis?

Ainda por cima - por descontrolo, organização deficiente ou má-fé - o Estado actua (de forma cega) contra uma Instituição de apoio social que, no limite, está a prestar os serviços que deveriam ser da responsabilidade do próprio Estado. Enfim, o levantamento da referida penhora já foi efectuado mas só depois da imprensa ter aparecido e após a confirmação de que a mercadoria em causa se destinava à realização do fim de utilidade pública.

Como li algures "quando colocamos sistemas informáticos a fazer as penhoras, ao invés de funcionários, dá nisto" ...

segunda-feira, março 09, 2015

Carta aos meus Filhos ...



Nem sempre a voz da experiência (embora ela seja lembrada amiúde como a da sabedoria suprema) se revela a mais correcta. Contudo, nós, como pais, tentámos ao longo dos tempos transmitir-vos valores que achámos serem fundamentais como a honestidade, a verticalidade e o respeito pelos outros. Anos e anos a dizer-vos das nossas convicções e como elas nos guiaram pela vida, lutando pela liberdade e por esse conjunto de valores. Uma educação dada não por cartilha mas pelo exemplo. E - por virtude nossa ou pela vossa inteligência - vimo-los crescer e tornarem-se pessoas de bem.
Porém, lamento dizê-lo, já não tenho tantas certezas. E digo-vos porquê.

Recordam-se quando ambos conseguiram trabalho (temporário e a recibos verdes), como foi difícil percebermos os tortuosos enredos das leis de então, nomeadamente as que à Segurança Social diziam respeito? Pois nunca nos deixámos esmorecer pela (defendida por muitos) ignorância ou má interpretação dessas leis, que nos levariam ao seu incumprimento e, mais tarde, às sanções nelas estabelecidas. Com muita persistência (e com muito cansaço também) calcorreámos os balcões da Segurança Social e das Repartições de Finanças onde fazíamos milhentas perguntas e procurávamos as explicações - tantas vezes contraditórias - para não falharmos. As leis (pese embora as diversas interpretações que delas se façam) são para se cumprir. E ninguém deveria ser excepção à regra.

Mas nem sempre é assim. O caso muito falado nos últimos dias de um cidadão que, por acaso, também é o actual Primeiro-Ministro do nosso país, demonstra inequivocamente como indivíduos que deviam estar bem informados sobre as obrigações que cabem a qualquer cidadão são com frequência incumpridas. Custa-me entender como é que certas pessoas desconhecem (?) que as contribuições para a Segurança Social são obrigatórias. Será que pensam um dia reformar-se sem ter que fazer descontos?

É verdade que Passos Coelho até veio a pagar uma dívida (que até já estava prescrita) depois de um jornalista "chato" ter começado a investigar o homem. É verdade que Passos já veio a público dizer (em tom aparentemente humilde que até dava dó ... ou raiva) que não é um cidadão perfeito, que teve algumas vezes falta de memória, outras, simplesmente, falta de dinheiro (coisa que dificilmente acontece a qualquer outro cidadão). É verdade que ele entregou declarações e pagamentos fora de prazo. E é quase certo que Passos ainda tem dívidas a regularizar com a Segurança Social.

Mas Passos Coelho não é um contribuinte qualquer, é Primeiro-Ministro e foi deputado. E o exemplo que deu aos seus concidadãos (a que se juntam outras trapalhadas ainda mal explicadas como os casos da Tecnoforma e do Centro Português para a Cooperação) são inadmissíveis, especialmente vindos de alguém que tem exigido tamanhos esforços aos portugueses. Dois pesos e duas medidas?

Apesar de tudo, e sabendo como é difícil manter uma coluna vertebral direita neste país de esquemas e habilidades, continuamos a acreditar que a ética, a seriedade e o trabalho valem a pena. E por sabermos que também pensam desta forma, queremos manifestar, queridos filhos, o nosso grande orgulho em vós.